Parte I
Era uma noite chuvosa de janeiro
E através da janela do banheiro
Três viajantes que voltavam da Bahia
Viram que o ônibus não tava onde devia
E perceberam a mancada:
Tinha acabado de perdê-lo na última parada
Começaram a conversar sentados no meio-fio
O assunto era bom e nem ligavam para o frio
Ao som de um caminhão, ouviram um assobio
Era um caminhoneiro indo para o Rio
"Ou, qué carona?"
Aceitaram, mas um deles hesitou
Só entrou no caminhão quando ouviu o rock'n'roll
Bastante inusitado era o caminhoneiro
Rejeitar o sertanejo, desprezar até baião
Também era estranho ser tão jovem e já estar
No comando de um volante e vivendo do transporte de feijão
Tirando o dinheiro da passagem que perderam
E o tempo que passaram debaixo do temporal
A carona que ganharam para o Rio de Janeiro
Valeu muito mais a pena no final
Descobriram uma série de coincidências
Tanto o caminhoneiro quanto os outros três
Tocavam algum tipo de instrumento musical
E eram fascinados pelo rock inglês
Não é difícil deduzir o que houve a seguir
Os quatro reunidos por acaso
Nem criaram caso quando um deles sugeriu
Que aquele exato instante, naquele dia
Fosse o capítulo um da biografia
Da banda formada por um caminhoneiro
E três viajantes que voltavam da Bahia
Parte II
Quase um mês
Quase um mês depois
Ninguém tinha se falado depois da chegada
E a banda acabado ali mesmo, na estrada
Foi então
Que o caminhoneiro João
De passagem novamente pelo Rio estava
Numa loja de discos usados quando encontrou
O mesmo caroneiro que queria formar a banda de rock'n'roll
João lhe confidenciou que tinha pensado
Seriamente em vender seu caminhão
José na mesma hora ficou interessado
Em ligar pros outros dois e marcar uma reunião
Teobaldo e Mário se mostraram empolgados
Mas no primeiro ensaio a ilusão se desfez
Não fosse a persistência de um desempregado
Teriam terminado outra vez
Mas um show
Melhorou a situação
E ganharam os primeiros fãs que lhe seguiam
Em qualquer boteco, qualquer buraco que iam
Tocar
E propagar o rock
E numa noite dessas descobriram um cara
Que gostou demais da banda e prometeu contratá-la
Só precisavam amansar o som e diminuir as guitarras
E quando o bolso dói a cada final de mês
Nenhuma ideologia tem vez
Parte III
Ligue seu rádio que você vai ouvir a nossa banda tocar
Se não me conhece, permita que eu possa nos apresentar
Meu nome é Mário e estes são José, Teobaldo e João
Fazemos um som pra garantir nosso pão
É muito bom ver nosso cd em primeiro lugar no Brasil
Parece um sonho pra quem era a pior banda do Rio
Quem disse que grana não traz felicidade mentiu
Mas às vezes a mesmice incomoda também
Por isso sempre é bom variar
E não ligar para o que vão pensar
E conseguir manter o sucesso
Com um segundo disco pra se orgulhar
E viajar o país inteiro,
Fazer show em qualquer canto
Sem perder o encanto
E de quebra dar uma atenção a mais
Àquelas fãs dedicadas
Que sempre nos visitam lá nos camarins
Mesmo que a música
Só sirva de pretexto para outros fins
Parte IV
Teobaldo, eu sei que ninguém aqui é santo
Mas você que está caído aí no canto
Talvez devesse maneirar
Teobaldo, entendo que você não quer parar
Mas vai ser melhor pra todo mundo
Um baterista que saiba se controlar
Mário, você está feliz nesse momento
Mas não será precipitado o casamento
Com essa fã de quem a gente mal ouviu falar?
Mário (Mário!), te desejo toda sorte pra sua filha
Mas se quiser cuidar só da família
É melhor que para outro dê lugar
João, por favor me diga quem são
Esses novos integrantes que só querem o dinheiro
Que nós lutamos tanto para ter?
Será que só eu consigo perceber
Que a nossa banda está prestes a morrer?
Vocês precisam concordar com o que eu vou dizer
É apenas uma sugestão
De voltar com a velha formação
Já que não temos mesmo nada a perder
Parte V
Quando Teobaldo superou o vício
Celebrou o fim da época difícil
Voltando finalmente às baquetas e aos pratos
Que de fato lhe valeram o sacrifício
E Mário, cuja voz servia atualmente
Só pra discutir com a mulher
Viu que lhe valia muito a pena realmente
Aceitar o convite de José
E depois de uma longa negociação
Saíram os integrantes convidados por João
E então o mundo soube da notícia
De que estava feita a reunião
Dos fãs veio o sucesso
Da crítica veio a aceitação
Mas do destino veio a grande ironia
O azar que os seguia trouxe a sombra do caixão
E os sonhos de sucesso terminaram
Com José e o terrível acidente
Que não mais que de repente lhe amputou a mão
E não puderam mais continuar
E um fã insatisfeito com a triste decisão
Não agiu com a razão
E no funeral de Mário
A viúva era o centro das atenções
E ninguém percebeu em Teobaldo
Seu ar inconsolado ou suas intenções
Pensou em pular de um prédio
Cogitou tomar remédio
Um tiro foi mais fácil
E saiu desse mundo com um gatilho apenas
E a duras penas finalmente percebeu João
Que aqueles anos todos tinham sido em vão
E decidiu seguir a vida sem roteiro
E voltou a ser caminhoneiro
Dirigindo por outras muitas noites chuvas de janeiro