Fato que foi um dia em que dona Valentina há de se lembrar por toda sua vida
Chegou um pouco mais cedo que de costume
Ainda era escuro e fedia o chorume da feira passada quando percebeu
O crime de assassinato que ocorreu
Logo quando ela montava sua barraca de bolo de milho, café e cachaça
Ouviu disparos de dentro do Mercado da Lapa
Correu assustada, mas foi pro lado errado
E logo se depara com uma cara de pássaro
Que a encarava
“Olha, dona Valentina, eu te conheço dessa vida
Seu patê de grão de bico é bom
Mas se cê abrir o bico eu não vou ter pena não
E nem me vem com essa de “”calma””
Fica calada
Tu tem sorte de eu tá de máscara
Se tu visse minha cara essa conversa ja tava acabada. ”
O homem, sem dizer mais nada
A olhou calada e apontou com as garras pro pó de café
Ela pegou a água da garrafa térmica
Sua mão tremia mais que suas idéias
E o copo se enchia e pingava pavor
E mesmo com o café pelando
Ele bebeu tudo a sangue frio num gole só
Só depois de comer um pedaço do bolo
Que o homem então voltou a falar
“Quanto é que foi? Toma aqui não precisa de troco
Eu já tô indo embora, já vou vazando, mas presta atenção no que eu vou te soprar
Ouça essa melodia que agora é sua e detém tua vida
Voltarei aqui todo dia e então
A assoviarei com a precisão de um carrasco em sua última missão
Se você não me der a resposta exatamente com as mesmas notas
Morre a canção. ”
O autor daqueles disparos tão afiados sumiu na sombra da da manhã fria
E o que era noite logo virou dia
E Valentina seguia com a companhia
Da sombra do medo que engolia sua paz
E logo às 9 horas da manhã a notícia já estava nos jornais
“Assassinato no mercado da Lapa, sem testemunhas e câmeras desligadas. ”
E logo, às dezesseis horas por todo Brasil
A cabeça de um homem já estava a prêmio
E logo mais a noite, com um tiro de fuzil
É que um oficial foi se pronunciar na TV aberta, em rede nacional
Pra falar
“A busca foi concluída com grande sucesso, o suspeito já foi detido
E me espera aqui na viatura
Pra darmos seguimento então ao 99° Distrito Policial
De São Paulo. ”
E Valentina viu pela televisão, e então dormiu tranquila e aliviada
Rezou 3 Ave Marias e 4 Pai Nosso pra dar graças a Deus
E o dia seguinte veio mais uma vez
E dessa vez após um pesadelo
Mas sem tempo pra se preocupar
Ela seguia então sua rotina diária
Pegou a barraca e foi trabalhar
E seu filho pequeno, dormindo
E o dia lentamente se pariu
Sem nenhuma parcela de receio
Mais de tarde, um olho, um rio
Uma voz, uma Kombi, uma falta de ar lhe veio
Após este calafrio, a tontura passou
Com um pio na espinha e a loucura de brinde
E logo na primeira nota
Daquele sombrio assovio que anunciava o perigo do pássaro
Para Valentina que estava a atender a clientela faminta
“Moça, quanto é que tá aquele lá? Moça, me vê um chá de hibisco? ”
E Valentina assoviava na cara da gente que saia brava
Mesmo a vendo chorar
E seu ouvido, absoluto
Não a deixava cometer o crime de se enganar
Assoviou todas as notas
Repetidas vezes até apagar
Já faz muito tempo que essa história aconteceu com a dona Valentina
E todos os espelhos então quebrados
Na esquina da sanidade
Refletem o fim da vida cansada
E da mente cegada pela rotina
Hora seguindo, hora morrendo
Mesmo que todos os dias ainda nos matem de receio
Em nosso meio impermeável é que acontece o doido
E o esmo em nossos dados de muitos lados
Quase sempre dão menos de dez
Com Valentina foi igual
E com você?
Me diga qual crime é seu revés