A lembrança de como ela veio a deitar-se naquela cama
Numa deveras irretocável espécie de beleza
Por cuja magnitude indeclarável
Eu mesmo viria a perder o senso de direção anos depois
Costumava tornar com mais força no passado
Nos últimos meses, porém
O percurso das pérolas negras
À pálida luz me fugia, fugaz
Lembro-me de sentar à sua frente, com corpo despido
Revolvido pelos finos lençóis
De que se constituía nossa manta
E observá-la sobre a superfície amarrotada
Descabelada, descoberta
Numa certa forma mística de poesia
À hora escura, pela primeiríssima vez me percebia
Então mais apaixonado que todas as outras horas
Todas as outras eras
Eram outras histórias, eram passado
Que diante da grandeza daquele sentimento
Que se apercebia, não passavam de meros ensaios
E aquele corpo quase me sussurrava o pecado
Com respiração serena, a indecifrável morena
Tomava-me os braços e pernas e fazia de mim
A mais bela peça moderna; e eu, súdito
Permitia-lhe fazer-me numa nova forma
Num novo arquétipo, um novo ensaio
Iluminada pela lua, numa nua afeição sincera
No final, ela sorria-me com a única covinha
Na bochecha direita
E eu já não tinha mais outras vontades
Ligeiras, as outras mulheres todas sumiam
Os outros vícios todos tinham partido
Não deixando espaço para nada que não fosse dela
Pelos cinquenta e cinco anos que se seguiriam
E foi com arrebatadora percepção de realidade
Que me enlacei, ainda naquela noite
A tudo que seria dela
Sem mesmo me preocupar com reciprocidade
Ou outras bobagens. queria aquela imagem
A se repetir por noites eternas e transcendentais
E que ela tivesse, no interior de sua própria composição
A inabalável certeza de que poria nela toda a realeza
Que possuía - e ao coroá-la rainha de mim
Naquele mesmíssimo segundo
Em que vislumbrava seu corpo à luz alva
Eu afirmava assim que seu reinado fim não teria
Mesmo que a vida se encarregasse
Do fardo de separar-nos
Chegar-se-ia o momento, eu sabia
Em que as lembranças daquele doce passado
Não mais me tocariam da mesma forma
Que as sensações para as quais ela houvera
Me despertado anos antes faleceriam
Como as flores que secam, como o tempo
Que escorre e a gente já não tem mais
Como eu já imaginava inimaginável
O caminho que tomariam essas lembranças
É com grande emoção que este epitáfio escrevo
Meu amor. um segundo epitáfio
Três anos depois de sua partida
Uno a força sobre-humana da minha vida
E eternizo-te neste desabafo
Viver é, ainda, muito difícil sem você ao lado
Que chegue logo o dia em que deitaremos
Naquela cama de novo, meu bem
Como fizemos quando pequenos
E que jamais me faltem motivos para querer te observar
De novo, e de novo, e de novo, estático
Na eternidade daquele segundo que em ti eu me perdi
E jamais consegui me encontrar