O que haveria no fundo do poço?
Era uma das curiosidades da infância.
Eu ia por vezes à casa daquela senhora gorda, verruga no lado esquerdo do queixo projetando uma grande variedade de pêlos rebeldes, cabelos quase brancos formando birote, vestido de cor clara, estampa miúda, amarrotado, sempre com resíduos da refeição que se havia preparado anteriormente. Ia ali quando acabava água no bairro e ela se tornava abastecedora da rua, uma vez que tinha poço.
Todos, afinal muita gente aparecia nessa hora, advertiam pra tomar cuidado, pois o risco de queda existia, mas o fundo do poço me atraia.
Eu precisava olhar atentamente lá dentro.
O ar que subia do poço dava uma sensação de frescor. Aquelas paredes tijoladas ou atijoladas, não sei, que desciam para a escuridão, o "cheiro" da umidade, a luz refletida no espelho d'agua deformado no fundo, e o som de cada gota de água que caia... era música.
Eu esperava atentamente alguns instantes para que uma gota de água desprendida do balde atingisse o fundo e emergisse o som característico acompanhado da reverberação.
O fundo do poço era um estado de inspiração poética.
O balde amarrado na corda desfiada de sisal subia com a água que parecia ter vida, e deveria ter mesmo.
Tudo, desde o vestido mal conservado da senhora gorda, a corda desfiada, o balde, o sarrilho, os tijolos, o poço...hoje tudo é pura poesia.
Quando a água chegava à superfície naquele balde bem areado, despertava-se a sêde instantaneamente. Eu pegava a concha que ficava ali e bebia água.
A sensação de se beber água cristalina de um poço tijolado ao lado de uma jaboticabeira em uma concha de alumínio amassada, bem areada, é única.
E o ciclo recomeçava, o sarrilho girava pra buscar água para outra pessoa, o som da engrenagem sem lubrificação, a madeira rangendo e novamente aquela visão do balde balançando na ponta da corda desfiada descendo lentamente, indo ao fundo escuro do poço, a água fresca fazendo poesia la embaixo.
Era iso que havia no fundo do poço, não água, poesia.
Poesia de uma época.