Dos retalhos que tenho
Corto, moldo e rasgo
A linha, sob o tecido
Desenha um nó trançado
Há furos pros cadarços
De cada um dos lados
Do coração, fiz as tripas
E das tripas, um sapato
Dos sapatos, só espero
Ter os pés guardados
Os pés felicitaram
De nova e bela casa
Os olhos acenderam
De surpresa grata
De sapatos feitos
Com tanto esmero e calma
Sou simples e humilde
Mas não sou descalça
Dos sapatos, só espero
Que encerrem minha alma
A vida inteira fui
Menina entre meninas
Havia altas, havia baixas
Eu era pequenina
Mas nada diferente
De tantas outras filhas
De pais todos iguais
Com mães tão parecidas
Dos sapatos, só espero
Que desvelem minha vida
As meninas usam brincos
E tranças nos cabelos
E todas têm saias
Que terminam nos joelhos
Mas sou única e feliz
Quando olho no espelho!
Todas têm sapatos
Mas o meu é vermelho
Dos sapatos, só espero
Que me sejam por inteiro
O céu cheio de susto
Fazia som de chuva e vento
Uma carruagem
Mancava a passo lento
Antiga como a senhora
Que me sorriu de dentro
Me cura a solidão
E te curo o desalento
Dos sapatos, só espero
O mundo como invento
O convite da senhora
Foi direto
Queres vir comigo
E dormir sob meu teto?
Demorei o lábio
Duvidoso e quieto
Mas senti no peito
Um assentir sincero
Dos sapatos, só espero
Que estejam sempre perto
Não me demorei
E entrei na carruagem
De longe, vimos a casa
Surgir da tempestade
Depois daquela porta
Recomeça tua idade
Com ternura lhe sorri
E nasceu nossa amizade
Dos sapatos, só espero
Uma casa de verdade
Já vesti os lençóis
Da tua nova cama
Tira as roupas molhadas
E veste teu pijama
Deita e prega os olhos
Se o dia lhe cansa
Dorme, meu bem
Dorme, minha criança
Dos sapatos, só espero
Que te vistam a infância
Um dia, a senhora
Pouco antes de sair
Chamou: Filha querida
Não tema, venha aqui
Vi você brincando
E os sapatos, também vi
São tão simples e doídos
Quanto a dó que te senti
Dos sapatos, só espero
Que sejam belos como ti
Nem por um segundo quis
Mas fui sem protestar
De sapatos que são tanto
É tão custoso explicar!
Sapatos mais que sapatos
Sapatos-casa, sapatos-lar
Via neles a minha vida
Como se visse a vida em par
Dos sapatos, só espero
Que deem fim ao meu pesar
Depois, ela me deu
Sapatos de princesa
Disse: Ficam lindos
Em teus pés de camponesa
Dê fim naqueles outros
Bem servem à fogueira
Concordei, mas escondi
Os antigos na gaveta
Dos sapatos, só espero
Que relevem minha pobreza
Meus sapatos eram rotos
Eram rasgados e puídos
Feitos com o mais pobre
De todos os tecidos
Mas eram só meus
Próximos como amigos
Sem eles, encolhi
Num silêncio entristecido
Dos sapatos, só espero
Que me devolvam o sentido
Era tanta a saudade
Dos sapatos que fiz
Que mais dia menos dia
Eu decidi partir
No fundo do armário
Os sapatos que escondi
Me sorriram descobertos
E convidaram a fugir
Dos sapatos, só espero
Que não esqueçam de mim
Logo que eu calcei
Meus sapatos antigos
Avistei no horizonte
Um vulto indefinido
Se aproximou de mim
Me encarou a olhos vivos
Meu nome é liberdade
Quer dançar comigo?
Dos sapatos, só espero
A travessia como abrigo
Se assim querem os pés
Então eu dançarei
Dançarei o dia todo
A semana e o mês
E antes de parar
Pra pensar se cansei
Hei de começar
E dançar mais uma vez
Dos sapatos, só espero
A liberdade como lei
Por muito, dancei
Rodopiava de alegria
Eram pés felizes
Meus pés de alforria
Quando enfim cansei
Suspirei em agonia
Que o corpo parasse
O sapato dançaria
Dos sapatos, só espero
Deitar em calmaria
Os sapatos não paravam
Dançaram tarde e tardes
Crescia-me o cansaço
Crescia-lhes o alarde
E perguntei a Deus
Se é pecado a liberdade
Se hei de pagar
Por ter identidade
Dos sapatos, só espero
Que guardem minha imagem
Era uma dança histérica
Nem cabia nos sapatos
Mas eles continuaram
Dançando estrada abaixo
Dentro de uma aldeia
Desvairada de cansaço
Bati em uma porta
Atendeu o carrasco
Dos sapatos, só espero
Perdão de meu pecado
Precisa muito de ajuda
Tamanho é o seu revés
Mas, menina, não é minha
A ajuda que tanto quer
Hei de cortar-te a cabeça
Antes que conte dez
Por favor corte
Não a cabeça, mas os pés
Dos sapatos só espero
O mundo como é
Sem pés e sem sapatos
Implorei ao aldeão
Você que cortou meus pés
Abre meu peito com as mãos
Acha dentre as costelas
Pulsando, o coração
E coloca em seu lugar
Punhados de algodão
Dos sapatos, só espero
Que salvem meus pés do chão