"Retrato De Amália"-Ary dos Santos
És filha de Camões, filha de Inêz
Assassinada voz de portuguesa
Cantando a nossa imensa pequenez
Com laranjas e gomos de tristeza!
É no claro Mondego dos teus olhos
Que se debruça o mal da nossa mágoa
Ao Tejo dos teus gestos que se acolhe
O nosso coração a pulsar água!
Falando desatada de saudade
Choras um povo, cantas a balada
Mais bonita que soa na cidade
de Lisboa, por ti apaixonada
"Defesa Do Poeta"-Natália Correia
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer
Havemos De Ir A Viana
Entre sombras misteriosas
em rompendo ao longe estrelas
trocaremos nossas rosas
para depois esquecê-las
Se o meu sangue não me engana
como engana a fantasia
havemos de ir a Viana
ó meu amor de algum dia
ó meu amor de algum dia
havemos de ir a Viana
se o meu sangue não me engana
havemos de ir a Viana
Partamos de flor ao peito
que o amor é como o vento
quem pára perde-lhe o jeito
e morre a todo o momento
Se o meu sangue não me engana
como engana a fantasia
havemos de ir a Viana
ó meu amor de algum dia
ó meu amor de algum dia
havemos de ir a Viana
se o meu sangue não me engana
havemos de ir a Viana
Ciganos, verdes ciganos
deixai-me com esta crença
os pecados têm vinte anos
os remorços têm oitenta
Monólogo De Orfeu
Vinicius de Moraes
Mulher mais adorada!
Agora que não estás
deixa que rompa o meu peito em soluços
Te enrustiste em minha vida
e cada hora que passa
É mais por que te amar
a hora derrama o seu óleo de amor em mim, amada
E sabes de uma coisa?
Cada vez que o sofrimento vem
essa vontade de estar perto, se longe
ou estar mais perto se perto
Que é que eu sei?
Este sentir-se fraco
o peito extravasado
o mel correndo
essa incapacidade de me sentir mais eu, Orfeu
Tudo isso que é bem capaz
de confundir o espírito de um homem
Nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
esse contentamento, esse corpo
E me dizes essas coisas
que me dão essa força, esse orgulho de rei
Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música
Nunca fujas de mim
Sem ti, sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada
Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!
A existência sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos
Tu és a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo
minha amiga mais querida!
Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! Criatura!
Quem poderia pensar que Orfeu
Orfeu cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres
que ele, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos?
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho
que eu vou te seguindo no pensamento
e aqui me deixo rente quando voltares
pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que estarei contigo